Quando Oswald de Andrade propõe, no “Manifesto Antropófago”, publicado na Revista da Antropofagia, em 1928, que a história do Brasil deveria ter início em 1556, data em que o Bispo Sardinha foi capturado e devorado pelos índios Caetés, ao invés de 1500, data do descobrimento oficial do país por Cabral, ele propõe não só uma nova e diversa cronologia da história brasileira, mas uma diferente imagem da sociedade, definida não mais a partir da mestiçagem e do sincretismo (como na romântica metáfora final de O Guarani), nem da cordialidade das relações sociais e humanas, mas a partir do desencontro, do conflito e da violência entre os grupos que tinham interesses contrastantes durante todo o processo de colonização brasileiro, como índios, originalmente os detentores das terras, os portugueses, que tinham interesse em colonizar tais territórios e em utilizar, para tal empresa, a mão de obra indígena, e os africanos, transformados de homens livres em escravos para trabalhar nas fazendas. Tal imagem, mais aderente à realidade, como propôs o autor em seus manifestos, foi delineada, sobretudo, no livro Pau-brasil, publicado em 1925, no qual Oswald de Andrade redescobre, literalmente, o seu país, ao percorrer, nas várias seções da obra, as etapas fundamentais da formação do Brasil. O poeta modernista fará da história uma revisão crítica, introduzindo o ponto de vista problemático do ex-colonizado, com suas remoções e traumas. O livro é subdividido em oito séries de poemas, ligadas entre si, mas privilegiarei aqui a seção “Poemas da Colonização”, composta por quinze breves textos, que delineiam, com rápidas e eficazes pinceladas, os contornos e a estrutura da sociedade escravocrata e patriarcal, que pousava suas bases no lavoro do negro. Tal estrutura, como sabemos, só entrará em crise em 1888, quando D. Pedro II sanciona a abolição da escravidão em nosso país. O eu lírico retrata os momentos da difícil jornada do escravo, sua fadiga de viver e suas tentativas de subtrair-se à violência e às leis férreas que o subjugavam, contra as quais não tinha instrumentos legais para se opor. São poemas curtos, intensos, muitas vezes chocantes na descrição das punições recebidas por aqueles que desobedeciam ou tentavam fugir das fazendas. O meu objetivo é indagar sobre o modo como o poeta paulista, filho de fazendeiros, se despoja de si, de seu mundo e de sua classe privilegiada e se adentra por vidas desvalidas de escravos, quase sempre trágicas, sobretudo as das mulheres, muitas das quais tinham como única alternativa o suicídio. Com isso, busca-se evidenciar que a ficcionalização do eu lírico e a incorporação de vozes múltiplas já estava presente desde o primeiro Modernismo, sobretudo em Oswald de Andrade.

Uma história de conflitos negada: ficcionalização do eu lírico em “Poemas da colonização”, do livro Pau-Brasil, de Oswald de Andrade

De Oliveira, Vera Lucia
2020

Abstract

Quando Oswald de Andrade propõe, no “Manifesto Antropófago”, publicado na Revista da Antropofagia, em 1928, que a história do Brasil deveria ter início em 1556, data em que o Bispo Sardinha foi capturado e devorado pelos índios Caetés, ao invés de 1500, data do descobrimento oficial do país por Cabral, ele propõe não só uma nova e diversa cronologia da história brasileira, mas uma diferente imagem da sociedade, definida não mais a partir da mestiçagem e do sincretismo (como na romântica metáfora final de O Guarani), nem da cordialidade das relações sociais e humanas, mas a partir do desencontro, do conflito e da violência entre os grupos que tinham interesses contrastantes durante todo o processo de colonização brasileiro, como índios, originalmente os detentores das terras, os portugueses, que tinham interesse em colonizar tais territórios e em utilizar, para tal empresa, a mão de obra indígena, e os africanos, transformados de homens livres em escravos para trabalhar nas fazendas. Tal imagem, mais aderente à realidade, como propôs o autor em seus manifestos, foi delineada, sobretudo, no livro Pau-brasil, publicado em 1925, no qual Oswald de Andrade redescobre, literalmente, o seu país, ao percorrer, nas várias seções da obra, as etapas fundamentais da formação do Brasil. O poeta modernista fará da história uma revisão crítica, introduzindo o ponto de vista problemático do ex-colonizado, com suas remoções e traumas. O livro é subdividido em oito séries de poemas, ligadas entre si, mas privilegiarei aqui a seção “Poemas da Colonização”, composta por quinze breves textos, que delineiam, com rápidas e eficazes pinceladas, os contornos e a estrutura da sociedade escravocrata e patriarcal, que pousava suas bases no lavoro do negro. Tal estrutura, como sabemos, só entrará em crise em 1888, quando D. Pedro II sanciona a abolição da escravidão em nosso país. O eu lírico retrata os momentos da difícil jornada do escravo, sua fadiga de viver e suas tentativas de subtrair-se à violência e às leis férreas que o subjugavam, contra as quais não tinha instrumentos legais para se opor. São poemas curtos, intensos, muitas vezes chocantes na descrição das punições recebidas por aqueles que desobedeciam ou tentavam fugir das fazendas. O meu objetivo é indagar sobre o modo como o poeta paulista, filho de fazendeiros, se despoja de si, de seu mundo e de sua classe privilegiada e se adentra por vidas desvalidas de escravos, quase sempre trágicas, sobretudo as das mulheres, muitas das quais tinham como única alternativa o suicídio. Com isso, busca-se evidenciar que a ficcionalização do eu lírico e a incorporação de vozes múltiplas já estava presente desde o primeiro Modernismo, sobretudo em Oswald de Andrade.
2020
978-85-217-0291-7
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Utilizza questo identificativo per citare o creare un link a questo documento: https://hdl.handle.net/11391/1477128
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